Por: Bruno Minchilo
Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Vós estáveis dentro de mim, mas eu estava fora (...). Tocastes-me e agora desejo ardentemente a vossa paz.[1]
Bem-vindo ao post inaugural do boletim Domus Aurea – Arquitetura Sacra, um guia de publicações comprometido em honrar e promover o rico patrimônio cultural e artístico da Igreja, manifesto através da arquitetura, em consonância com o que outrora afirmou o estimável Papa Bento XVI:
Os tesouros artísticos que nos rodeiam não são simplesmente monumentos impressionantes de um passado distante. Pelo contrário, (...) são um testemunho perene da fé imutável da Igreja no Deus Trino e Uno que, na frase memorável de Santo Agostinho, é Ele mesmo "Beleza sempre antiga e sempre nova”. [2]
É notável o renascimento geral do interesse pelo tema das artes, nos mais diversos campos: da literatura à musica, pintura, escultura etc. Do mesmo modo há uma crescente busca por conhecimento e referências de qualidade no campo das artes sacras. Mas qual seria o fundamento e a motivação do interesse pelo tema?
Acreditamos que, em parte, o motivo vem de um despertar da consciência para valores que transcendem as esferas materiais, imanentes e mais imediatas que nos cercam. Um despertar de que temos outras necessidades, distintas e superiores aos instintos mais básicos ou práticos, necessidades espirituais, intelectuais e morais. A boa arte seria, então, um auxílio eficaz para suprir essas necessidades e elevar o espírito. No caso da arte sacra o sentido transcendental é ainda mais vital, como declara São João Damasceno:
A beleza e a cor das imagens estimulam a minha oração. É uma festa para os meus olhos, tanto quanto o espetáculo do campo estimula meu coração a dar glória a Deus.[3]
Conjuntamente, observa-se um reconhecimento por parte dos fiéis de que a sagrada liturgia deveria ser rezada e vivida de maneira mais profunda e devota, guiada pela virtude da religião[4], e que se faz necessário conectar o componente celestial da liturgia à oração. Como resultado, há um anseio, e até mesmo uma exigência, de que uma casa dedicada a Deus e à celebração litúrgica manifeste um profundo sentido do sagrado e inspire a oração. Segundo o padre dominicano Aidan Nichols:
"A construção de uma igreja oferece uma oportunidade maravilhosa de fazer, para a glória de Deus e para o bem dos homens, uma coisa bela em um mundo onde o feio se faz tão presente, e encarnar um símbolo em um mundo onde os símbolos são tão esquecidos. Uma casa é apenas a pousada noturna de um peregrino, enquanto uma igreja deveria ser o reflexo da vida eterna e da bem-aventurança."[5]
UMA RESPOSTA EFICAZ
Aqui pretendemos dar uma resposta a essa busca e interesse, no quanto nos for possível, trazendo artigos acerca da arquitetura e eventuais temas adjacentes das artes litúrgicas que auxiliem arquitetos, clérigos, estudiosos e todos os demais fiéis a descobrirem os tesouros da Arquitetura Sacra.
Ademais, traremos exemplos de relevantes obras que acreditamos exemplificarem beleza, simbolismo e continuidade, em uma mescla de história, patrimônio, princípios tradicionais e as suas aplicações práticas hoje. Desse modo, apoiaremos a prática da Arquitetura Tradicional, que abrange o melhor de todas os períodos e estilos, como um continuum criativo que reúne um rico acervo de obras e conhecimentos de grandes artistas, conforme afirma a Sacrosanctum Concilium:
A Igreja nunca considerou um estilo como próprio seu, mas aceitou os estilos de todas as épocas, segundo a índole e condição dos povos e as exigências dos vários ritos, criando deste modo no decorrer dos séculos um tesouro artístico que deve ser conservado cuidadosamente.[6]
O CAMINHO DA BELEZA
Nosso foco será evidenciar a nobre beleza[7], entendendo-a como uma qualidade divina, o pulchrum, na qual tudo o que é belo participa e reflete a beleza de Deus ao tê-lo por causa eficiente, exemplar e final.
A beleza não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação.[8]
Essa beleza materializada em uma obra artística – segundo os critérios elencados por Santo Tomás de Aquino: integritas, consonantia e claritas[9], que acreditamos serem características essenciais para uma boa arquitetura – participa e reflete a beleza divina, elevando a alma à verdade para que essa seja contemplada e amada.
Com a sua beleza, as imagens sacras são também anúncio evangélico e exprimem o esplendor da verdade católica, mostrando a suprema harmonia entre o bom e o belo, entre a via veritatis (via da verdade) e a via pulchritudinis (via da beleza).[10]
Enfim, a missão da Domus Aurea é redescobrir e restaurar a beleza, a santidade e o resplendor da arquitetura sacra católica e trazer à luz os princípios de uma arquitetura sacramental para os dias de hoje. Para tal, entendendo que o princípio orientador de um autêntico e vivo processo de renovação encontra a sua essência no lema de São Pio X, “Instaurare Omnia in Christo”.[11]
A via pulchritudinis é uma longa tradição na Igreja. Ela pede hoje para ser redescoberta, porque ela foi muitas vezes esquecida e até combatida, porque mal compreendida.[12]
DOMUS AUREA ES MARIA
O título Domus Aurea (Casa de Ouro) faz referência direta ao título mariano presente na Ladainha Lauretana. Nas Sagradas Escrituras é dito que a Casa de Ouro era o Templo de Salomão, onde Deus resolveu habitar.
Nada havia no templo que não estivesse coberto de ouro: até cobriu de ouro todo o altar do oráculo. – I Reis 6, 22.
No séc. I a Casa de Ouro de Israel fora destruída pelo general Tito, ao passo que, no coração de Roma, elevava-se outra Domus Aurea. Um imenso palácio romano, desenhado a partir da excentricidade do imperador Nero, boa parte revestido de folhas de ouro e com uma imensa estátua de bronze, supostamente representando-o como o Deus do Sol. Tal episódio simboliza os posteriores escritos de Santo Agostinho:
Dois amores erigiram duas cidades (...) aquela é o amor de si até ao desprezo de Deus; esta, o amor de Deus até ao desprezo de si – De Civitate Dei, 2, L. XIV, XXVIII.
Todavia, acima da cidade dos homens personificada na Domus Aurea de Nero, brilhava o esplendor de Deus. Não na magnificência do Templo de Salomão, que ruía com a corrupção do povo de Israel, mas na verdadeira Domus Aurea. Segundo Santo Afonso, se o templo fora tão rico, adornado e revestido de um material que não se corrompe, o que dizer da casa construída pelo próprio Deus para que fosse a sua primeira morada sobre terra?
A Virgem Maria foi a Catedral escolhida e construída por Deus, para que Cristo viesse habitar entre nós, e que agora refletia o brilho da glória divina, pois assunta aos céus. Sua beleza e esplendor conferiu-lhe o título Tota Pulchra es Maria [13], toda pura, bela, formosa, em uma das antífonas das Vésperas da Solenidade da Imaculada Conceição. Porquanto afirmou São Bernardo:
"Como o esplendor do sol banha o vidro e com impalpável sutileza atravessa sua solidez, e não o rompe quando penetra, nem quando sai o destrói, assim o Verbo de Deus, esplendor do Pai, entrou na virginal morada e dali saiu, porque a pureza de Maria é um limpíssimo espelho que nem se quebra pelo reflexo da luz, nem é ferido por seus raios." [14]
Se no Templo de Jerusalém a presença de Deus não era plenamente manifesta, no ventre de Nossa Senhora Ele habitava e permanecia todo inteiro: corpo, sangue, alma e divindade, em sua humanidade e na sua divindade, inseparáveis para a nossa salvação. Maria Santíssima, a perfeita Domus Aurea, é a imagem da perfeição da Igreja enquanto corpo místico de Cristo, mas é também o modelo perfeito da igreja Casa de Deus, Arca da Aliança, Casa de Ouro. Nela se encontra a chave para uma verdadeira renovação em Cristo,
Instaurare Omnia in Christo per Mariam.
Domingo, 21 de Agosto de 2022,
memória de São Pio X, precedida pela
Solenidade da Assunção de Nossa Senhora.
Bruno Minchilo é Arquiteto e Urbanista, especialista em Arquitetura e Arte Sacra pela Faculdade São Basílio Magno (FASBAM). Devoto de Santa Teresa de Jesus adotou um trecho do clássico “Imitação de Cristo”, reverberado por essa grande santa, como lema para a sua vida profissional e espiritual, em uma busca continua por tornar as igrejas e, principalmente, os corações, moradas de Deus.
“É pelo preparo do aposento que se conhece o amor de quem acolhe o seu Amado”.
Imitação de Cristo. Livro 04, cap. 12, 1.
NOTAS
[1] Santo Agostinho de Hipona. Confissões, X, 27.
[2] Papa Bento XVI, Aos Patrocinadores das Artes dos Museus do Vaticano. Vaticano, 1 de Junho, 2006.
[3] São João Damasceno, De sacris imaginibus oratio 1, 16: PTS 17, 89 e 92 (PG 94, 1245 e 1248). Apud Catecismo da Igreja Católica, §1162.
[4] Virtude moral, que nos inclina à vontade de prestar a Deus o culto que lhe é devido.
[5] Pe. Aidan Nichols, O.P. - Epiphany : a theological introduction to Catholicism, cáp. 9, pt. 3.
[6] Concílio Vaticano II, Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium. Roma, 1963, c.VII, n.123.
[7] Concílio Vaticano II, Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium. Roma, 1963, c.VII, n.124.
[8] Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, S.S. Bento XVI, Roma, 22 de fev., 2007, n.35.
[9] Integritas: modo pelo qual a arte reflete a integridade da mensagem e encarna a própria integridade sem que lhe falte algo de essencial; Consonantia: modo como cada elemento do edifício e da obra de arte trabalham juntos, a harmonia entre os elementos, bem como a maneira como a mensagem e a arquitetura ressoam; Claritas: modo pelo qual a arte revela a verdade ao invés de obscurecê-la e faz resplandecer as suas formas e cores.
[10] Papa Bento XVI, Discurso Apresentação do Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. 28 de jun., 2005, n.7.
[11] Renovar todas as coisas em Cristo.
[12] Cardeal Paul Poupard, ex-presidente do Pontifício Conselho para a Cultura. “A beleza, caminho de evangelização e diálogo”: as conclusões da Assembléia Plenária do Pontifício Conselho da Cultura. Agência Fides, Vaticano, 29, março 2006.
[13] O texto da antífona Tota Pulchra es Maria provém do Cântico dos Cânticos: “tota pulchra es amica mea et macula non est in te” Ct. 4,7. A mulher amada simboliza o exemplo de perfeição que a Igreja desde a antiguidade aplicou a Maria na devoção à sua Imaculada Conceição.
[14] CONTENSON, Vicentii. Theologia Mentis et Cordis, v.3, Apud Ludovicum Vivès. Paris, 1875, trad. livre, p. 291.
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